Transição e Valorização Energética

Fomos convidados para uma apresentação sobre o muito oportuno tema acima numa Audiência Pública no BNDES em abril passado. Estamos sempre falando em atingir a transição energética, mas como não existe sustentabilidade sem se levar em conta os fatores econômicos, a valorização energética não pode ficar de fora desta conversa.
Coincidentemente iniciamos este texto no dia em que nosso presidente assinou a MP da “Reforma do Setor Elétrico” e o secretário de estado Marco Rubio disse em audiência no senado americano que seu país deveria incentivar investimentos em inteligência artificial (IA) no Paraguai, utilizando-se da energia produzida por Itaipú.
Assim como os europeus, que estão interessados em importar hidrogênio de baixo carbono produzido no Brasil por eletrólise a partir de energia eólica (vide texto da Revista STAB da edição abril/maio/junho de 2024 - Hidrogênio de Baixo Carbono - Rotas de Produção), agora os americanos estão interessados em viabilizar datacenters a partir de energia hidrelétrica de Itaipú. Mas esta “reforma do SEB” (Sistema Elétrico Brasileiro) não procura corrigir as distorções que impedem a adequada valorização energética das nossas fontes renováveis de energia e que criam problemas para uma operação segura do Sistema Integrado Nacional (SIN).
Os humanos sempre criaram impactos no meio ambiente, é inevitável. A humanidade está se tornando cada vez mais energívora, aumentando tais impactos, mas uma parcela considerável da humanidade ainda não é energívora por falta de renda, mas merecidamente pretende ser e devemos prever esta situação.
A energia fóssil já foi bioenergia que está armazenada há milhões de anos, mas que tem sido utilizada pela humanidade há cerca de 150 anos aproximadamente. Considerando os aspectos disponibilidade, qualidade, transporte e armazenamento, as fontes de energia fóssil são concorrentes formidáveis para a viabilização econômica das fontes de energia renovável.
As fontes renováveis podem ser divididas em três grandes grupos, cada qual com suas externalidades.
Permanentes, como UHE com reservatório ou térmica com biomassa florestal¹. Fornecem energia elétrica com potência síncrona e com pequeno armazenamento de combustível¹, favorecendo a qualidade dos Serviços Ancilares (vide texto da Revista STAB da edição julho/agosto/setembro de 2022 - Natureza das Fontes de Energia Renovável - Serviços Ancilares).
Sazonais, como PCH ou térmica com bagaço de cana². Fornecem energia elétrica com potência síncrona mas com grande armazenamento de combustível², também favorecendo a qualidade dos Serviços Ancilares.
Intermitentes, como eólica, solar centralizada ou solar MMGD. Fornecem energia elétrica sem potência síncrona e dependem dos Serviços Ancilares. Necessitam grande armazenamento na forma de energia elétrica ou em outras formas, tais como potencial gravitacional, ar comprimido, etc, para poder modular o seu despacho ao longo de cada dia.
Importante ressaltar dois aspectos. A agricultura e as UHE são muito dependentes das condições climáticas, de maneira que mesmo as fontes renováveis permanentes não têm a mesma disponibilidade garantida das fontes fósseis. Por outro lado, as fontes intermitentes não fornecem potência síncrona, ou seja, não garantem a estabilidade do SIN no caso de variações inesperadas de tensão e/ou frequência causadas por variações inesperadas de demanda e/ou de geração. Fontes de energia intermitentes operando perto da sua capacidade nominal foi a causa raiz do tanto do apagão no Brasil em agosto de 2023 como do apagão recente na península Ibérica.
Portanto, depender de fontes renováveis sem comprometer a segurança no SIN exige grandes investimentos em armazenamento de energia, o que torna as fontes renováveis, talvez com exceção de UHE já amortizada, mais dispendiosas do que as fontes fósseis.
Bill Gates denominou esta diferença de custos como “Green Premium”. A humanidade deve estar conscientizada de que pagando o “Green Premium” seria possível reduzir os impactos negativos dos GEE. A decisão de arcar com o “Green Premium” vai variar em função do desenvolvimento de cada sociedade. Sociedades mais ricas deveriam ser mais facilmente convencidas do que as mais pobres. Em nossa sociedade as políticas públicas deveriam garantir que o “Green Premium” seja pago pela parcela mais energívora da população.
O nosso desafio é considerarmos estas externalidades negativas inerentes acima mencionadas das fontes renováveis e promovermos soluções técnicas que permitam uma adequada valorização energética com eficácia das fontes renováveis.
Eficácia é a busca da redução de custos com o simultâneo aumento da eficiência energética. Perfeição seria obtermos a máxima eficiência energética com o mínimo custo. Excelência é a busca constante da perfeição, que infelizmente não existe.
A Geração Distribuída (GD) e os Sistemas de Cogeração (COGEN) são ferramentas que promovem a valorização energética com eficácia. A GD evita investimentos e perdas em transporte e em armazenamento de energia. E a COGEN operando com alta eficiência no uso de combustíveis diversos favorece a GD.
A grande oportunidade é incentivarmos a GD e a COGEN na associação de fontes energéticas diversas para procurar minimizar as externalidades negativas das fontes renováveis. Aliás o Brasil é pioneiro na associação de fontes fósseis com fontes renováveis. Os dois exemplos marcantes no Brasil são o etanol misturado na gasolina e o biodiesel.
Ora, as usinas de cana têm tudo a ver com GD, COGEN e associação de fontes energéticas diversas. Elas exportam energia elétrica com potência síncrona estando mais próximas dos centros de carga (GD).
Elas são a maior fonte de produção de eletricidade do Brasil em sistemas de cogeração (COGEN). São pioneiras na associação de fontes distintas com a mistura etanol/gasolina. Mas existe um enorme potencial de geração de energia ainda desperdiçado.
A eficiência termodinâmica típica para exportação de energia elétrica pelas usinas de cana é de 65% a 70% com ciclo termodinâmico de cogeração, com a energia térmica sendo usada no processo, mas é de apenas 25% a 30% com ciclo termodinâmico de geração pura com bagaço excedente. Ou seja, o bagaço e/ou a palha excedentes são muito mal aproveitados do ponto de vista energético quando utilizados apenas para geração de energia elétrica.
Uma associação energética já adotada com sucesso no Brasil é a da cana com o milho, pois o bagaço excedente passa também a ser usado em ciclo de cogeração. Ou seja, o processamento associado da cana com o milho fomenta a valorização energética da cana. E eventualmente pode tornar econômico o uso de palha da cana, já que a mesma também seria utilizada em um sistema de cogeração.
Nas usinas associadas cerca de 5 t de cana processadas durante 8 meses fornecem energia excedente para processar 1 t de milho durante onze meses com sistema de cogeração. Tipicamente 5 t de cana ou 1 t de milho produzem de 400 a 420 litros de etanol. A possibilidade de duplicação da produção de etanol sem a necessidade de combustível externo favorece a instalação de ciclos termodinâmicos mais eficientes em usinas de cana que exportam pouca ou nenhuma energia elétrica. E o aumento de receita pode viabilizar a eventual substituição de caldeiras com baixa eficiência. E as usinas associadas ainda continuariam a exportar energia elétrica para a rede, agora produzida 100% em ciclo de cogeração.
Outra associação energética que deverá ser adotada em breve com sucesso no Brasil é o biometano com gás natural (GN), já que a agroindústria canavieira detém cerca de 60% do potencial de produção de biogás no Brasil.
A produção típica de biogás de vinhaça varia de 5,55 a 6,25 Nm3/tc, e a de biogás de torta de 1,60 a 2,30 Nm3/tc, chegando a uma produção média total na faixa de 8,00 Nm3/tc. A produção típica de biometano, cerca de 60% do biogás, corresponde a 4,80 Nm3/ tc e pode substituir o óleo diesel utilizado no cultivo e no processamento da cana, reduzindo drasticamente a sua pegada de carbono. As usinas de cana próximas de gasodutos provavelmente serão as primeiras a viabilizar a associação de GN com biometano, o que certamente incentivará o investimento em novos gasodutos pelas distribuidoras para atender novas regiões.
Num país tão grande e diversificado como o Brasil, os nossos agentes públicos têm como desafio promover políticas para melhorar as condições de competição das fontes renováveis por meio de soluções sistêmicas, eventualmente de cunho regional, que promovam o aumento da complementariedade e a redução da concorrência entre as fontes renováveis.
Devem fomentar a implantação de UHE com reservatório, o qual na prática funciona como se fosse uma enorme bateria elétrica, para promover a complementariedade com outras fontes intermitentes, além de informar a população sobre a natureza e a importância dos Serviços Ancilares na operação do SIN.
Concluindo, consideramos que a Transição Energética (fins) poderá ser atingida pela Descarbonização Gradual (meios) usando como ferramentas a Valorização Energética e a Associação Energética.
A busca por soluções sistêmicas e/ou regionais para fomentar a viabilidade das fontes de energia renovável será indispensável, com sistemas de COGEN que aumentam a Eficiência Energética dos processos e por consequência melhoram a sua Valorização Energética.